sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Como um médico deve agir.

O texto abaixo é um relato de caso clínico que mostra o que acontece na nossa realidade e expõe exemplos a serem seguidos e outros não.

O comportamento se altera



Uma senhora branca, viúva, de 90 anos, previamente sadia e sem uso regular de fármacos inicia alterações comportamentais e agitação psicomotora. Ela mora em seu apartamento próprio, é financeiramente independente (tem 3 filhos, cada um com sua família e apenas um morando na mesma cidade) e tem duas acompanhantes que se revezam.
Numa das visitas à mãe, um dos filhos nota que ela está se comportando estranhamente, além de não reconhecê-lo, algo que jamais havia ocorrido. Um clínico é chamado para uma visita domiciliar.

Alterações comportamentais de início agudo, principalmente se associadas a agitação psicomotora, são clássicas da síndrome do delirium, um desarranjo no funcionamento cerebral superior que conhece várias etiologias. Em muitas situações existe uma alteração primária fora do sistema nervoso (infecção, distúrbio hidro-eletrolítico, uso de fármacos, por exemplo) que acaba comprometendo a função neuronal. É claro que a síndrome do delirium pode se instalar sobre situações neurológicas bem definidas (doença de Parkinson, doença de Alzheimer, para citar algumas), mas é essencial que se reconheça que doenças outras que não as neurológicas e psiquiátricas podem levar ao quadro. Poucas situações pedem por uma avaliação clínica tão abrangente quanto a de uma pessoa com a esta síndrome.

O clínico medica

O clínico visita a senhora e prescreve olanzapina. O uso de neurolépticos em uma pessoa com alterações comportamentais é uma tentação difícil de resistir. Haloperidol e clorpromazina, os nomes tão clássicos da primeira geração dessas drogas, logo vêem à mente. Seus benefícios são bem documentados, mas seus efeitos colaterais bem conhecidos (principalmente parkinsonismo e alterações cardíacas) sempre refreiam seu uso. Principalmente em pessoas idosas e de maior poder aquisitivo, fica-se muito tentado a prescrever um neuroléptico mais novo, como risperidona, olanzapina ou quetiapina.
Esses últimos fármacos foram desenvolvidos na esperança de melhorarem os chamados sintomas negativos da esquizofrenia (principalmente o isolamento social), uma vez que os sintomas positivos (as alucinações e delírios) já eram bem controlados pelos de primeira geração. Acreditava-se, até pouco tempo atrás, que essas drogas ofereciam um grau de segurança muito maior (em termos de efeitos colaterais), um pensamento que começa a cair por terra (NEJM 2006;355:1525). O uso hoje de neurolépticos de última geração precisa ser pensado caso a caso, sempre lembrando de seu alto custo. Uma situação em que eles, principalmente a olanzapina, encontram um nicho bem definido é no tratamento das alucinações de pacientes com algumas síndromes Parkinson mais (como a demência dos corpos de Lewy), em que as drogas de primeira geração são muito mal toleradas. De qualquer maneira, o uso de um neuroléptico nesta senhora, sem qualquer outra ação, significa que o médico abdicou de fazer um diagnóstico etiológico e está satisfeito em medicar sintomaticamente, algo que até pode ser feito; mas não será ainda muito cedo para isto?

Não há qualquer melhora

Um neurologista então é chamado e decide pela hospitalização. Hospitalizar uma pessoa com vistas a centralizar as investigações diagnósticas pode ser uma estratégia útil. Entretanto, é preciso evitar a hospitalização que só traz benefícios para o médico. De qualquer forma, se existe um fator de risco bem conhecido para o desencadeamento de uma síndrome do delirium numa pessoa idosa, este é a hospitalização.

As investigações e a prescrição de alta



Durante a hospitalização, as investigações consistem em hemograma, bioquímica básica, urina EAS, urocultura e radiografia de tórax, todos normais. É solicitada uma avaliação cardiológica (exame físico e ECG) que também nada revela. A senhora então recebe alta com prescrição de risperidona e sem explicação sobre o que está acontecendo. Observe que voltamos ao patamar anterior: tratamento sintomático de uma síndrome do delirium, sem qualquer idéia da etiologia. Isto certamente pode acontecer, mas continue acompanhando o desenrolar da história.

O quadro se exacerba

Em casa, a situação se deteriora: a agitação aumenta. Contactado por telefone, o neurologista orienta reinternação: “procurem o plantão”. A senhora é internada novamente, para outro neurologista.

Isto não está bem. Temos uma senhora com síndrome do delirium, de etiologia desconhecida, nitidamente não respondendo a neurolépticos de última geração (até agora, olanzapina e risperidona), reinternada, e para outro neurologista que, agora, será o terceiro médico a vê-la.

Este último profissional solicita uma TC craniana que revela grande processo expansivo comprometendo lobos frontal, temporal e parietal à esquerda, com leve efeito de massa, notável sobre o corno anterior do ventrículo lateral esquerdo, com grande probabilidade de neoplasia maligna primitiva. Comenta com a família que “não há nada a fazer”, a não ser a internação para uma instituição para pacientes terminais. A família não concorda com esta indicação e o profissional dá alta com prescrição de dexametasona, 12 mg/dia.

Em casa, a agitação se torna ainda mais intensa, a ponto de fazer com que vizinhos perguntem o que está acontecendo. Contactado pelo telefone, o último neurologista orienta: “dê um comprimido de gardenal de 100.” Ao comparecer à farmácia, o filho descobre que este medicamento só é vendido com receita médica!

A família se sente perdida

Observe que existem razões para isso:

O primeiro médico (clínico) não fez mais contato para saber sobre a evolução da senhora; e isto após uma prescrição de olanzapina! Jamais

se prescreve um neuroléptico sem se acompanhar a evolução. Mesmo que a família não dê notícias, é obrigação do médico se informar. O segundo médico (neurologista) não fez o diagnóstico etiológico (síndrome do delirium associada a um tumor cerebral) que, por acaso, era essencialmente neurológico. Prescreveu uma droga (risperidona) do mesmo grupo de outra (olanzapina) que já não havia funcionado (será que ele sabia desse uso prévio?). Nunca visitou a senhora na segunda hospitalização (que foi no mesmo hospital) e nunca mais fez contato com a família.O terceiro médico (neurologista) fez o diagnóstico etiológico, orientou a instituição para pacientes terminais (será que sabe a razão pela qual a família não concordou?), deu alta com prescrição de dexametasona (presumivelmente para redução do edema cerebral associado), sem indicação de tempo de tratamento nem prazo para reavaliação, e finalmente, quando consultado por telefone, prescreveu fenobarbital, para o qual sabia da exigência de receita.
Por mais que a família possa ter sua parcela de responsabilidade (e certamente tem) por esses encontros tão cheios de problemas, não há como isentar os médicos.

O quarto médico

Um outro clínico é chamado para uma visita domiciliar. A pessoa que solicita a visita diz que o médico encontrará a senhora com a empregada. Isto não é bom, e indica muito sobre o comportamento da família. Como é possível que não haja nenhum parente presente num caso assim? O médico exige a presença de um parente como condição para a visita.

A história

Na visita, a nora da paciente conta a história: vida saudável, com filho falecido de tuberculose pulmonar há 2 anos, e acidente cerca de 1 mês antes do início do quadro atual, em que foi arranhada por cachorro. Os sinais vitais estão preservados e, incrivelmente, está aceitando alimentação e as funções excretoras estão preservadas. A TC craniana mostra os achados já descritos.

A ação

O médico identifica a cuidadora principal (uma das empregadas), avalia seu potencial, explica o que está acontecendo, suspende dexametasona e inicia haloperidol gotas, após explicar que o número de gotas e o espaçamento entre elas acontecerão de acordo com a resposta. Agenda visita de acompanhamento, diária, até definição do resultado (que é alcançado em 48 horas, prazo em que a agitação cede completamente, com a dose de 4 gotas 4 vezes ao dia). No dia seguinte ao da visita domiciliar, a família é convocada ao consultório onde os seguintes passos são dados:

Explica o que está acontecendo: uma síndrome do delirium por um provável tumor cerebral.Explica que certeza sobre o tumor cerebral só com uma biópsia para obtenção de algum tecido.Explica que o contato prévio com um caso de tuberculose (filho) a coloca em risco de ter contraído a infecção.Explica que a tuberculose encefálica pode simular um tumor.

Explica que o acidente com o cachorro pode ter transmitido uma infecção: raiva (caso em que o achado radiográfico não teria relação com a clínica atual) e abscesso cerebral são possibilidades.Pergunta sobre o paradeiro do cachorro: está vivo e normal. Descarta raiva.Pede autorização para consultar um especialista em imagens para tentativa de definição do diferencial: tumor, tuberculose, abscesso e possível necessidade de investigações adicionais.Responde a dúvidas gerais da família.A esperança de uma outra opção diagnóstica não se concretiza.

O contato com 2 imagenologistas especializados em sistema nervoso descarta outras possibilidades que não o tumor. Os colegas dizem que não há outro exame de imagem disponível que possa dar mais informações. Certamente só a biópsia seria definitiva, mas todos concordam que seria muito agressiva e com baixa probabilidade de alterar a história neste contexto. A família é comunicada e todos concordam com o acompanhamento em casa. A paciente está em paz, sem qualquer agitação e, surpreendentemente, aceitando alimentação e hidratação oral normalmente. No entanto, não é capaz de se comunicar com conteúdo. Fala algumas coisas e mantém controle esfincteriano. Os sinais vitais não se alteraram e ela alterna os dias entre a cama e a poltrona. Segue comandos durante o banho. O médico forja uma aliança cada vez maior com a cuidadora e família (telefonemas e visitas pontuais), preparando-os para o desenlace. Desde que se alcançou controle total da agitação, a dose de haloperidol vem sendo diminuída. No mesmo dia da última visita a paciente falece. O médico faz a última visita, preenche a declaração de óbito, é convidado a escolher com a família a urna funerária (naturalmente declina desta participação, explicando que se trata de uma escolha muito pessoal), e escuta da cuidadora: “ela morreu na minha mão”.

A última tarefa

Uma semana após, o médico escreve uma carta de condolências, um fecho para o caso que acompanhou.

Este caso leva a várias reflexões, mas acima de tudo, à necessidade imperiosa de que cada paciente se sinta acompanhado por um médico, um médico de referência, seu médico pessoal. Se houver uma doença bem definida pertencente claramente a uma especialidade, o especialista pode naturalmente ser este médico, mas desde que se comporte como um médico em plenitude. Não deixa de ser irônico que nesta situação, com um diagnóstico essencialmente neurológico, dois especialistas não tenham conseguido estabelecer um vínculo de confiança, base para qualquer prática médica.

Fonte: www.medicinaatual.com.br

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